terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Hoje quero escrever sobre algo com o qual tenho vivido nos últimos tempos e que tem condicionado a minha vida a vários níveis: a minha relação de amor e ódio com a comida.
Não me recordo já exactamente ao certo quando começou, creio que foi muito antes de eu sequer ter a noção do que era.
Talvez tenha começado por volta dos 13 anos quando, numa tentativa de emagrecer á força eu comecei a passar dias sem comer nada.
Passava os dias na escola a sentir-me mal, fraca, tonta, sem energia e triste.
Ia constantemente á casa de banho com uma necessidade enorme de vomitar. Vomitava uma espécie de espuma porque não tinha mais nada no estômago para expulsar.
À noite, quando ia para casa, os meus pais não imaginavam o que havia sucedido. E eu comia normalmente. E nunca emagrecia porque eventualmente eu comia ao jantar o suficiente para manter o meu nível de calorias diário.
No dia seguinte na escola repetia tudo outra vez.
Um dia desmaiei em pleno corredor da escola. Acordei com imensas caras de colegas e professores a olhar para mim ali caída no chão.
Jamais poderei apagar essa imagem da minha memória.
Lembro-me de me terem levado para as urgências e do médico dizer que eu estava com anemia.
O que sabia eu? Nem queria saber.
Creio que depois disso tentei corrigir o meu comportamento e passei a comer.
Conseguiria passar mais alguns anos a comer relativamente sem me preocupar. O pelo menos sem chegar ao extremo de não comer nada durante os dias.
E, portanto, continuaria com excesso de peso.
Creio que tudo voltou por volta dos 21/22 anos, não me lembro bem ao certo.
Por volta desta altura o meu desejo de emagrecer surgiu de novo.
Ao inicio tudo começou de uma forma pacifica.
Comecei por cortar algumas coisas da minha alimentação, reduzi as quantidades de outras coisas e finalmente consegui começar a ver resultados de emagrecimento. E isso foi a alavanca que desencadeou todo o problema. A partir de então nasceu em mim uma necessidade de desafiar os limites do meu corpo. Até onde eu poderia ir na perda de peso? Quanto poderia o meu corpo aguentar em termos de restrição alimentar?
Isto tornou-se um vício. Já era algo que me ultrapassava. Uma obsessão.
Se eu podia passar os dias com uma ou duas saladas e alguma fruta, talvez conseguisse passar os dias apenas com algumas frutas. Ou com apenas uma fruta. E porque não passar o dia em total abstinência de alimentos? Um dia? E porque não mais dias?
Tudo era possível, porque a vontade era enorme e eu não conseguia ver mais nada para além perda de volume corporal, de diminuição de valores de peso, de aparecimento de novos ossos salientes.
Havia momentos em que me sentia fraca, claro. Sentia-me de mau humor. Cansada. Não me conseguia concentrar nas aulas. Tinha más notas. Tinha muito sono. Tinha imensas dores da fome.
Outros momentos estava tão embriagada em emoções como a de poder vestir umas calças de um número que eu sempre idealizara, que nada mais importava.
Eu estava doente, muito, mas eu não tinha a noção.
E, na altura, eu não tinha a mínima noção de que tudo aquilo teria efeitos irreversíveis para sempre.
Com o tempo eu perdera tanto peso que as pessoas que me conheciam desde criança já não me reconheciam de cada vez que me viam.
E, se ao inicio me elogiavam dizendo que eu estava muito melhor assim, com o passar do tempo começaram a conspirar sobre o facto eu ter uma doença.
E eu tinha realmente, tinha uma doença tão grande que me sentia feliz com este tipo de comentários.
Naturalmente, o meu corpo chegou a um ponto de total saturação, ou seja cheguei a um momento em que não conseguia emagrecer mais. É verdade. A minha estrutura corporal não o permitia.
Curiosamente, eu pouco a pouco apercebi-me do mal que havia causado. Já não me achava mais bonita no espelho. Aliás, achava-me ainda mais horrível do que antes.
Tinha chegado a um ponto de total estagnação, e aí percebi que não podia mais continuar assim. Precisava de ajuda. Uma orientação, porque naquela altura eu já não me sabia alimentar. Tudo para mim era proibido. Tudo me causava peso na consciência.
Tomei então a decisão de consultar uma nutricionista.
A nutricionista examinou-me e disse que eu estava mesmo no limiar da anorexia. Um pouco mais tempo e não havia volta a dar.
Como esperado, ela elaborou um plano alimentar que eu segui durante algum tempo.
O objectivo daquele plano era fazer com que mantivesse aquele peso de uma forma saudável.
E, como esperado também, eu não o segui durante muito tempo, porque, a minha cabeça, sempre a maquinar novas paranóias, julgava que aquele plano só me iria engordar de novo.
Eu achava que estava a comer demais do que eu julgava aceitável.
Eu não confiava em ninguém, excepto em mim.
E voltei ao mesmo ponto.
Ou talvez não.
Algures após tudo isto, não sei bem já quanto tempo depois, comecei uma nova fase.
Uma fase em que eu, saturada de tanta privação durante tão tempo e de sempre me sentir miserável, decidi começar a comer com menos preocupações.
Ao inicio tudo bem. Esta fase foi um pouco como a inicial, começou de forma razoável.
Mas eu sempre fui uma pessoa de extremos, em tudo. O meio-termo nunca me contentou.
Eu não podia simplesmente começar a comer de forma normal como se nada fosse. Eu não poderia deixar passar assim de ânimo leve todos os distúrbios alimentares anteriores.
Seria muito fácil.
Fosse pela necessidade que o corpo tinha após tanta abstinência alimentar, fosse pelas frustrações que se sucediam na minha vida, fosse pelo demasiado tempo que tinha á minha disposição e consequentemente o enorme tédio, fosse tudo conjugado, uma nova fase se iniciou na minha relação com a comida.
Nesta fase eu tornar-me-ia viciada em comida.
Tudo começou por eu achar que estava na hora de poder comer com menor moderação…mas a menor moderação, rapidamente se transformou em excesso.
Esta fase seria tão auto-destrutiva como outras anteriores.
Eu só pensava em comida. E comia sem que tivesse fome. Aliás, eu já nem sentia fome. Pelo menos uma fome fisiológica. Nesta fase comecei apenas a reger-me pela fome emocional. A comida surgiu como um remédio que acalmava a minha ansiedade.
Quando tinha grandes crises de pânico, nervosismo …total descontrolo emocional …eu podia comer as coisas mais estapafúrdias que tivesse ao alcance. Comia as combinações mais bizarras que alguma vez experimentara. O sabor não me importava. Na verdade eu nem sentia o sabor da comida. Para a falar a verdade eu não tinha a noção de estar realmente a comer. Era como eu se estivesse sob hipnose, como se a minha consciência tivesse abandonado o meu corpo.
Só depois do “episódio” terminar, e que eu era confrontada com os “destroços” do que havia comido é que eu realmente me apercebia do que tinha acontecido.
E sentia-me horrível. De uma forma que não consigo explicar. Sentia-me tão mal, que acabava por ir comer compulsivamente de novo em seguida.
Eu já vivia num completo ciclo vicioso.
Quando finalmente conseguia acalmar, eu jurava que tinha sido a última vez. Que “amanhã” tudo seria diferente.
No outro dia repetia-se tudo outra vez.
Os episódios de descontrolo começaram a ser mais frequentes e envolvendo cada vez maior quantidade de comida.
Ficava acordada noites a comer. Não conseguia dormir enquanto não acabava toda a comida que tinha em casa. Aliás, apenas me sentia livre quando não restava mais comida, era a única forma que eu tinha de me certificar de que não comia mais. E por isso eu tinha que esgotar completamente o stock alimentar do momento, caso contrário não conseguiria permanecer serena.
E assim “vivi” durante algum tempo.
Como é obvio, com o tempo fui novamente aumentando o peso e, por muito que isso me deixasse frustrada, eu não conseguia parar.
Algum tempo depois, iniciaria uma nova fase.
Nesta fase conjugaria a privação alimentar com o excesso.
Na maioria do tempo, eu era uma anoréctica durante o dia, e uma comedora compulsiva durante a noite.
Outras vezes eu passava um, dois, três dias ou uma semana sem comer nada, seguindo-se posteriormente mais uns dias de alimentação compulsiva.
Eu tinha perdido por completo o domínio sobre todas as situações.
Suponho que é verdade o que dizem, distúrbio alimentar uma vez, distúrbio alimentar para toda a vida. É algo que permanece com a pessoa. Uma vez passando-se para o outro lado, não há retorno.
E eu nunca mais consegui ter uma refeição normal na minha cabeça. Deixei de saber o que é fome física, autêntica. Perdi a completa noção do meu conceito de saciedade.
A comida passou a ser apenas uma forma de alimentar estímulos emocionais.
Se eu estivesse mais calma e de bom humor, eu até podia passar um dia a comer de uma forma mais “aceitável” ou não comer nada, mas se pelo contrário, eu estivesse nervosa por alguma razão, se estivesse mais triste, aí perdia a noção do que comia.
Para quem, como eu, desenvolve este tipo de distúrbios alimentares há duas situações em que se consegue testemunhar as chamadas experiências “fora do corpo” : quando se passa muito tempo de privação de comida, e depois, no outro extremo, nos episódios das chamadas “orgias alimentares”.
Em quaisquer destas duas situações há um sentimento de leveza e transposição da consciência para um estado exterior ao corpo, e perde-se a noção do tempo, espaço e de tudo o resto.
Há uma parte de nós de um lado, e a outra observa tudo numa perspectiva mais elevada.
No entanto as sensações vivenciadas nas duas situações diferem em alguns aspectos.
Eu diria que esta experiência “fora do corpo” sente-se de forma mais acentuada durante um episódio de alimentação compulsiva, porque tudo acontece num menor curto de espaço de tempo, de forma mais abrupta. A adrenalina é tão forte que nos sentimos completamente transfigurados. Como se estivéssemos a observar-nos num daqueles documentários sobre a vida animal, em que nós somos a fera que devora,insaciável,a presa.
As cores das coisas alteram-se, sobressaindo mais, agindo como campainhas nos nossos olhos.
As formas dos objectos em nosso redor colidem numa só.
Durante a abstinência alimentar tudo vai acontecendo de forma mais gradual. Começa-se com um sentimento de total superioridade em relação às restantes pessoas. Estamos rodeados de pessoas a comer, e nós estamos ali completamente indiferentes em relação a toda aquela comida. Nestes momentos a energia/êxtase mental consegue apagar toda a debilidade física que se sente (e sente-se imensa). Quanto mais o tempo vai passando mais, mais fácil tudo se torna. Lá para o segundo dia de jejum o volume do som do mundo está diminuído. As cores das coisas também mudam neste estado, dissipam-se. Mudam as noções de profundidade, distância, altura, etc.…
A partir de então é como se não fizéssemos mais parte deste mundo.
Sente-se como aquelas cenas dos filmes em que o personagem vai passando e tudo em seu redor está desfocado, apenas há ênfase nos contornos do seu corpo.
Tudo o resto é secundário. A mente está mais elevada que o corpo.
Talvez por estas razões estes comportamentos sejam tão aditivos, porque, apesar de todos os estragos físicos que causam, eles conseguem trazer uma espécie de paz de espírito, uma satisfação adicional.Controlo no descontrolo. Harmonia no caos.
Faz-nos sentir que em qualquer um destes estados, vemos o mundo como não o conseguíamos ver num estado “normal”.
E quando se começa não se consegue parar.
No entanto, eu não escrevi isto para defender a “adopção” deste tipo de relacionamentos disfuncionais com a comida…se o que eu mais desejava é nunca ter vivido nada disto…se eu fantasio tantas vezes com o último dia em que tive uma alimentação normal…
Apenas precisava de escrever isto. De colocar isto em palavras de uma forma mais concreta e honesta, numa tentativa de conter este “monstro” dentro deste texto. E poder finalmente libertar-me.

Temo que isso não aconteça, mas não custa tentar…
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